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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Contribuição a Marx!!

Uma excelente apresentação do livro Contribuição à Critica da Economia Política*, de Karl Marx, feita por Reinaldo A. Carcanholo, vale a leitura:
APRESENTAÇÃO

Há algo de curioso em Marx. Sobre ele e sobre sua obra existiram ao longo do tempo e continuam a existir diferentes atitudes. Entre elas, consideramos, devem ser citadas três que talvez sejam as mais importantes. Está aquela dos que odeiam Marx e nunca o leram, ao lado de uma outra dos que o amam, mas também nada leram de seus escritos. Finalmente a terceira atitude a ser mencionada é a daqueles que querem lê-lo, ou melhor, estudá-lo. E para que isso? Por que estudar a obra de Marx nos dias de hoje?

Claro que é possível estudá-la com objetivos exclusivamente acadêmicos, mas não seria o mais importante. O estudo aprofundado da teoria de Marx, em particular de sua teoria sobre o capitalismo, permitirá que encontremos respostas a algumas perguntas fundamentais para a humanidade. Mencionemos algumas delas.


Sobreviverá o capitalismo por muito mais tempo? O que tal sobrevivência reservaria para o futuro da humanidade? Ao contrário, quais são as possibilidades e perspectivas de uma nova era para a humanidade, organizada por meio de uma nova forma de sociedade? Que características básicas deverá ter a possível fase de transição para essa nova era? Que sacrifícios serão impostos à humanidade nessa fase?


Outras perguntas mais específicas são também importantes para nós. Que papel jogamos, aqueles que vivemos nos países da periferia, no capitalismo contemporâneo? Quais são as perspectivas para os povos desses países em um capitalismo que se conserve por muito mais tempo?


Muitos, alguns até por ingenuidade, se satisfazem com respostas triviais a essas perguntas. Graças a uma concepção metafísica, consideram que o ser humano é, por sua própria natureza transcendental, um ser egoísta e que o capitalismo é a forma mais perfeita de organização da sociedade, forma na qual o homem realizaria a sua essência, o egoísmo. Para eles, a humanidade teve história, mas já não mais a terá. O capitalismo é a realização do paraíso na terra e, por isso, a história chegou ao seu fim. Os males e as misérias que observamos nos dias de hoje na humanidade, em certos espaços, não são o resultado desse sistema econômico e social, mas da sua ausência. Os que defendem essa perspectiva são os neoliberais. É verdade que há muito de hipocrisia nesse pensamento e seus defensores mais cínicos chegam até a admitir e a sustentar que a pobreza é uma necessidade do sistema, na medida em que o risco que ela representa, para cada um, é o motor a garantir que o ser humano desenvolva todo o seu potencial produtivo.



Existem outros que acreditam que o capitalismo pode sobreviver e resolver em grande parte seus males. Para isso, bastaria uma boa dose de vontade política. O Estado seria capaz, por meio de um conjunto de políticas adequadas, de solucionar ou no mínimo atenuar as contradições do sistema, de maneira a torná-lo mais humano. Aqueles um pouco mais lúcidos, dentro dessa visão, procuram encontrar, no meio da selvageria do capitalismo atual, algum setor social que, por seus interesses objetivos, fosse capaz de sustentar um projeto político desse tipo. Tendem algumas vezes a atribuir esse papel a um setor da “burguesia progressista”, nacional talvez. No entanto, a verdade é que a evolução do capitalismo nas últimas décadas tende a reduzir o número daqueles que ainda acreditam nessa quimera.

Também existem aqueles que perderam totalmente as esperanças e não acreditam em nenhuma possibilidade de grandes transformações para a sociedade humana. O mundo capitalista seria inevitável e a única coisa que podemos fazer é obter pequenas mudanças, por meio de lutas parciais e fragmentárias. De certa maneira, concordam com os neoliberais, pelo menos no sentido de que uma divindade superior teria decretado que o capitalismo é o fim da história. Qualquer desejo de impulsionar grandes transformações na sociedade seria ilusório; toda tentativa de construir uma interpretação global que permita uma ação nesse sentido é fracassada; não há espaço para os metarrelatos. É a perspectiva pós-moderna. Nas sábias palavras, quase versos, de Néstor Kohan, trata-se da “legitimação metafísica da impotência política”.


Justamente ao contrário, a teoria de Marx é intrinsecamente revolucionária, anticapitalista e humanista. Ela é uma teoria que sustenta a esperança e nos entrega instrumentos para a ação transformadora. Ela, estudada em toda a sua profundidade, estabelece bases sólidas para que construamos de maneira sistemática e científica, sem concessões à metafísica, respostas àquelas perguntas e a muitas outras importantes.


É óbvio que não se encontrarão diretamente neste livro de Marx, Contribuição à crítica da Economia Política, as respostas imediatas às perguntas que nos preocupam. O livro trata de apresentar exclusivamente os elementos básicos e abstratos de um enorme corpo teórico, resultado da pesquisa científica de Marx, corpo esse desenvolvido ao longo da extensa obra marxista, que inclui entre outros textos importantes O capital. O aporte científico de Marx consiste, na verdade, em um enorme edifício teórico sobre o capitalismo que precisa ser estudado e compreendido em toda a sua profundidade. Nele aparecem descobertas e expostas as leis gerais do funcionamento, desenvolvimento e dos limites da economia capitalista, que demonstram que se trata de uma fase social transitória no interior do processo de desenvolvimento da sociedade humana. Conhecer essas leis é o que permite adquirir uma sólida base para que cheguemos, com nosso esforço, a elaborar, também de maneira científica e não metafísica, respostas adequadas para as perguntas que nos interessam nos dias de hoje.


É a teoria do valor de Marx, em toda a sua amplitude (que engloba entre outras coisas a teoria do capital e da mais-valia, da exploração e do fetichismo, da desmaterialização da riqueza capitalista e, inclusive, a teoria da tendência decrescente da taxa de lucro), que nos permite entender a economia capitalista em suas determinações mais gerais. Compreender a fase atual que vivemos, além da necessidade de apropriar-se de maneira adequada dessa teoria, pressupõe um grande esforço científico de nossa parte. No entanto, tal esforço se vê em parte facilitado pelo método científico que nos foi legado por Marx e que precisa ser estudado.


A teoria marxista do valor permite-nos concluir, em primeiro lugar, que a contradição principal da atual fase capitalista é a que existe entre a produção e a apropriação da mais-valia, do excedente econômico em valor; que a atual expansão do capital especulativo e parasitário é a manifestação e o agravamento dessa contradição; que essa fase capitalista sobrevive até hoje, e o fez até agora, por mais de duas décadas, sobre a base de uma intensificação sem precedentes da exploração do trabalho. Tal exploração ocorre por meio da mais-valia relativa e absoluta, da superexploração dos trabalhadores assalariados e não assalariados de todo o mundo, incluindo os dos países mais miseráveis do planeta. A teoria do valor de Marx permite entender que essa fase capitalista não é eterna e que não poderá sobreviver por muito tempo mais.


Essa teoria, entendida em toda a sua profundidade, nos proporciona a convicção científica de que o capitalismo poderá sobreviver à destruição da sua fase atual especulativa, reformulando eventualmente seu funcionamento; mas só poderá fazê-lo destruindo o domínio do capital especulativo. Não há dúvida de que isso só será ou seria possível, ao contrário do que se pode imaginar, por meio de uma adicional elevação da exploração do trabalho, exploração essa que já se encontra em níveis exagerados. Tal situação implicará a intensificação e generalização da tragédia humana que já é manifesta em muitas partes do mundo contemporâneo. Pior que isso, a transição para uma eventual nova fase capitalista pressuporá períodos ou momentos ainda mais terríveis.

Entendida adequadamente, a teoria do valor de Marx leva-nos a concluir que a relativa comodidade em que se vive nos países mais ricos, mesmo uma parte de seus trabalhadores, não seria possível sem a pobreza e a miséria encontrada nos países periféricos. Nesse sentido, existe um excelente filme sobre o Norte da África, que não é um documentário mas uma ficção, cujo título em português é “A marcha”, e que apresenta como lema o seguinte: “eles são ricos porque somos pobres”. E poderíamos agregar: “nós somos pobres porque eles são ricos”. Obviamente que isso não significa, de nenhuma maneira, pensar que os trabalhadores daqueles países são exploradores de seus homólogos dos demais.

Finalmente, a teoria marxista permite entender que, ao mesmo tempo em que é possível uma nova etapa capitalista sob bases modificadas, justamente porque isso pressupõe um período ou momentos extremamente difíceis para a humanidade, abre-se a possibilidade da superação do próprio capitalismo. A transição para uma nova etapa capitalista ou para uma nova forma de sociedade radicalmente diferente, para o socialismo, é verdade, não consistirá em período dos mais belos da história. Ao contrário, será uma fase muito difícil para a humanidade. No entanto, se essas dificuldades estiverem efetivamente dentro de um processo de construção do socialismo, pelo menos se abriria a possibilidade de superação da pré-história do homem e o início de sua verdadeira história. Abrir-se-iam, assim, as possibilidades de superação da violência contra a verdadeira natureza humana, de superação da alienação e do trabalho alienado. Vislumbrar-se-ia o surgimento de uma sociedade a ser organizada sobre a base do trabalho criativo e que garantiria a realização plena do ser humano.


Se estamos na vizinhança de uma nova fase ainda mais violenta e mais terrível do capitalismo ou nos albores de um novo mundo, isso dependerá de cada um de nós. Para Marx, a história é uma construção do ser humano, limitada apenas pelas amplas potencialidades de cada momento. A superação da pré-história da humanidade será uma construção consciente ou não será.

É indispensável estudar com profundidade a teoria marxista sobre o capitalismo e, em especial, suas determinações mais abstratas e essenciais. Este livro é fundamental para isso, embora, em nossa opinião, não deve ser o primeiro de Marx a ser lido. O núcleo central deste volume, ora publicado pela Editora Expressão Popular, está constituído pelo que se conhece propriamente como Contribuição à crítica da Economia Política (3) de Marx (escrita nos últimos meses de 1858 e janeiro do ano seguinte), imediatamente antecedido pelo seu “Prefácio” (2).* Esses escritos aparecem neste volume acompanhados por outros textos relevantes. O que imediatamente segue a Contribuição... ficou conhecido como “Introdução** à Contribuição à Crítica da Economia Política”, ou simplesmente “Introdução” (4). Logo em seguida, encontramos dois artigos-resenha escritos (5) por Engels sobre a Contribuição....

Além de tudo isso, este volume da Editora Expressão Popular nos brinda com um excelente texto (1) de Florestan Fernandes, que é o tradutor das obras aqui apresentadas. Nele, Florestan discute aspectos relevantes do método marxista e apresenta, também, uma ampla abordagem sobre críticas que são feitas a Marx por desconhecimento de sua obra, ao analisar a relação desse autor com outros especificamente da área das ciências sociais, em particular com sociólogos.
A Contribuição... (3) propriamente dita está dividida em duas grandes partes. Na primeira, se estuda a mercadoria e, na segunda, o dinheiro. Ambos os temas reaparecem n’O capital com uma nova redação, melhorada segundo Marx.

O capítulo sobre a mercadoria n’O capital é, de fato, uma redação mais elaborada e melhor estruturada do conteúdo da primeira parte da Contribuição... Resume alguns aspectos, mas amplia o tratamento de outros. Em particular, o estudo que Marx faz sobre desenvolvimento dialético das formas do valor n’O capital, que vai da forma simples à forma dinheiro, tema extremamente importante, é muito mais amplo e mais satisfatório que o tratamento da Contribuição... No entanto, no que se refere às categorias relativas ao trabalho (trabalho abstrato, útil, privado e social) e à sua relação com o valor, com o valor de uso e com a riqueza, o tratamento da Contribuição... aparece muito mais desenvolvido e aprofundado. A simples leitura d’O capital nesse aspecto, em nossa opinião, é insuficiente e precisa se complementado com o que aparece neste volume.


Há uma dificuldade na Contribuição... Nela, Marx não distingue terminologicamente valor de valor de troca. Embora uma leitura atenta permita perceber essa distinção, o entendimento adequado do conceito, da sua essência e da aparência do fenômeno, fica dificultado. O autor muitas vezes fala de valor de troca quando deveria referir-se a valor. A terminologia mais precisa só virá à luz n’O capital. Além disso, a exposição da passagem da aparência para a essência do valor, o que consideramos o salto mortal da análise, o descobrimento do valor por detrás do valor de troca, só aparece nesta última obra. E aparece de forma brilhante, embora extremamente reduzida e, por isso, algumas vezes não percebida em uma leitura mais apressada. Especialmente por todas as razões apontadas, em nossa opinião, o estudo da mercadoria não deve iniciar-se pela Contribuição..., mas com a leitura do primeiro capítulo d’O capital e complementada depois.


Não deixa de ter interesse o estudo das questões apresentadas na segunda parte da Contribuição..., a que trata do dinheiro, apesar de aparecerem com nova redação, em parte mais desenvolvida e mais elaborada, n’O capital, distribuídas no capítulo 3º do seu livro I e em diversas partes nos seus livros II e III.


Por outro lado, o “Prefácio” (2), apesar de ser um texto de dimensões reduzidas, poderia ser tratado como obra independente. Sua importância está no fato de apresentar, de um ponto de vista abstrato, a concepção marxista sobre o desenvolvimento histórico, a concepção dialética e materialista sobre a história da humanidade. Por se tratar de texto reduzido, aqueles que desejarem encontrar ali uma visão mecanicista e determinista poderão sair até certo ponto satisfeitos, mas isso está longe de ser a real perspectiva de Marx. Uma leitura mais atenta pode desfazer essa interpretação.


A “Introdução” (4) ou “Prólogo” não foi preparado por Marx para publicação. Trata-se de um texto referido por seu autor no “Prefácio” (2) como “esboço” e foi dele suprimido por razões expositivas. O nome “Introdução” ou “Prólogo” à Contribuição à crítica da Economia Política deve-se a Kautsky, seu primeiro editor, e aparece também como texto inicial do que ficou conhecido como Grundrisse, rascunhos de pesquisa escritos entre 1857 e 1858 por Marx. Talvez sua parte mais importante seja a de número três (“O Método da Economia Política”), texto profundo e de compreensão difícil, único em que Marx expõe de maneira algo sistemática sua visão sobre o método científico para o estudo da sociedade humana. Assim, se a leitura da Contribuição... (3) deve ser, em nossa opinião, precedida pelo menos pelo estudo do capítulo sobre a mercadoria d’O capital, enfrentar as dificuldades do texto sobre o método contido na “Introdução” exige muito mais. A leitura dessa parte deve ser deixada para depois de bem avançado o estudo da obra maior de Marx, O capital, em particular depois da leitura do primeiro capítulo do seu livro III.


Finalmente, as resenhas de Engels (5) publicadas neste volume também não deixam de ter interesse, em especial algumas observações suas sobre a questão do método marxista.


Terminemos esta apresentação voltando à questão apresentada no início. Há certa razão naquelas atitudes, as de amor e as de ódio, dos que nunca leram Marx. A perspectiva teórica marxista é intrinsecamente anticapitalista e é lógico que provoque sentimentos contraditórios. Mesmo exclusivamente por instinto, uns (os que objetivamente possuem) e outros (os que não possuem interesse na continuidade do sistema e dos privilégios que garante para alguns em contraste com a miséria dos outros), respectivamente, têm razões para o ódio e o amor por esse autor.


A dialética marxista é em si mesma revolucionária. Aqueles que são revolucionários por puro impulso do coração, por puro humanismo ou legítimo interesse objetivo, sairão fortalecidos nas suas convicções e muito mais eficazes na sua ação se, à sua emoção, adicionarem um sólido conhecimento científico sobre o capitalismo, sobre os seus determinantes e sobre os caminhos do processo revolucionário. Razão e coração juntos se completam.


A teoria de Marx nos ensina que precisamos, mais que nunca, lutar contra o capitalismo, pela humanidade.


“Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.”


Vitória, julho de 2007
Reinaldo A. Carcanholo

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*MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. Tradução de Florestan Fernandes. 2. ed., São Paulo: Expressão Popular, 2008.